Sobre
a Misericórdia no Antigo Testamento
São João Paulo II
“[...] a misericórdia faz parte não somente da noção de Deus,
mas caracteriza também a vida de todo o povo de Israel e de cada um dos seus
filhos e filhas: é a essência da intimidade com o seu Senhor, a essência
do seu diálogo com Ele. Precisamente sob este aspecto, a misericórdia é
apresentada em cada um dos Livros do Antigo Testamento com grande riqueza de
expressões. Seria difícil, talvez, procurar nestes livros resposta meramente
teórica à pergunta: o que é a misericórdia em si mesma. Contudo, a própria terminologia que
neles é usada pode dizer-nos muitíssimo a tal respeito [...]” - Nota 52:
Ao
definirem a misericórdia, os Livros do Antigo Testamento servem-se sobretudo de
duas expressões, cada uma das quais tem um matiz semântico diverso. Antes de
mais, o termo hesed, que indica uma profunda atitude de «bondade». Quando
esta disposição se estabelece entre duas pessoas, estas passam a ser, não
apenas benévolas uma para com a outra, mas também reciprocamente fiéis por
força de um compromisso interior, portanto , também em virtude de uma
fidelidade para consigo próprias. E se é certo que hesed significa
também «graça» ou «amor», isto sucede precisamente na base de tal fidelidade.
O facto de o compromisso em questão ter um carácter, não apenas moral, mas como
que jurídico, não altera a sua realidade. Quando no Antigo Testamento o
vocábulo hesed é referido ao Senhor isso acontece sempre em relação
com a aliança que Deus fez com Israel. Esta aliança foi da parte de Deus um dom
e uma graça para Israel. Contudo, uma vez que Deus, em coerência com a Aliança
estabelecida, se tinha comprometido a respeitá-la, hesed adquiria, em
certo sentido, um conteúdo legal. O compromisso «jurídico» da parte de Deus
deixava de obrigar quando Israel infringia a aliança e não respeitava as
condições da mesma. E era precisamente então que hesed, deixando de ser
uma obrigação jurídica, revelava o seu aspecto mais profundo: tornava-se
manifesto aquilo que fora ao princípio, ou seja, amor que doa, amor mais
potente do que a traição, graça mais forte do que o pecado.
Esta fidelidade para a «filha do meu
povo» infiel (cf. Lam 4,3.6), em última análise é, da parte de
Deus, fidelidade a si próprio. Isto aparece evidente, sobretudo pela frequência
com que é usado o binómio hesed we'emet (= graça e fidelidade), que
se poderia considerar uma endíades (cf. p. ex., Ex 34,6; 2 Sam 2,6;
15,20; Sl 25[24],10; 40[39], 11 s.; 85[84],11; 138[137],2; Miq 7,20).
«Eu faço isto, não por causa de vós, ó casa de Israel, mas pela honra do meu
santo nome» (Ez 36,22). Assim, também Israel, embora sob o peso das
culpas, por ter quebrado a aliança, não pode ter pretensões em relação ao hesed de
Deus, com base numa suposta justiça (legal). No entanto, pode e deve continuar
a esperar e a ter confiança em obtê-lo, já que o Deus da aliança é realmente
«responsável pelo seu amor». Fruto deste amor é o perdão e a reconstituição na
graça, o restabelecimento da aliança interior.
O segundo vocábulo que na
terminologia do Antigo Testamento serve para definir a misericórdia é rahªmim.
O matiz do seu significado é um pouco diverso do significado de hesed.
Enquanto hesed acentua as características da fidelidade para consigo
mesmo e da «responsabilidade pelo próprio amor» (que são características em
certo sentido masculinas), rahªmim, já pela própria raiz, denota o
amor da mãe (rehem= seio materno). Do vínculo mais profundo e originário,
ou melhor, da unidade que liga a mãe ao filho, brota uma particular relação com
ele, um amor particular. Deste amor se pode dizer que é totalmente gratuito,
não fruto de merecimento, e que, sob este aspecto, constitui uma necessidade
interior: é uma exigência do coração. É uma variante como que «feminina» da
fidelidade masculina para consigo próprio, expressa pelo hesed. Sobre este
fundo psicológico, rahªmim dá origem a uma gama de sentimentos, entre
os quais a bondade e a ternura, a paciência e a compreensão, que o mesmo é
dizer a prontidão para perdoar.
O Antigo Testamento atribui ao Senhor
estas características quando, ao falar d'Ele, usa o termo rahªmim. Lemos
em Isaías: «Pode porventura a mulher esquecer-se do seu filho e não ter carinho
para com o fruto das suas entranhas? Pois ainda que a mulher se esquecesse
do próprio filho, eu jarnais me esqueceria de ti» (Is 49,15). Este amor,
fiel e invencível graças à força misteriosa, da maternidade, é expresso nos
textos do Antigo Testamento de várias maneiras: como salvação dos perigos,
especialmente dos inimigos, como perdão dos pecados — em relação aos indivíduos
e também a todo o povo de Israel— e, finalmente, como prontidão em satisfazer a
promessa e a esperança (escatológicas), não obstante a infidelidade humana,
conforme lemos em Oséias: «Eu os curarei das suas infidelidades, amá-los-ei de
todo o coração» (Os 14,5).
Na terminologia do Antigo Testamento
encontramos ainda outras expressões, que se referem de modo diverso ao mesmo
conteúdo fundamental. Todavia, as duas acima mencionadas merecem uma atenção
particular. Nelas se manifesta claramente o seu originário aspecto
antropomórfico: para indicar a misericórdia divina, os autores bíblicos
servem-se dos termos que correspondem à consciência e à experiência dos homens
seus contemporâneos. A terminologia grega da versão dos Setenta apresenta-se
com uma riqueza menor do que a hebraica; não reflecte todos os cambiantes
semânticos próprios do texto original. Em todo o caso, o Novo Testamento
constrói sobre a riqueza e a profundidade que já caracterizavam o Antigo.
Deste modo, herdamos do Antigo
Testamento — como que numa síntese especial — não apenas a riqueza das
expressões usadas por aqueles Livros para definir a misericórdia divina, mas
também uma específica, obviamente antropomórfica, «psicologia» de Deus: a
impressionante imagem do seu amor que, em contacto com o mal e, em
particular, com o pecado do homem e do povo, se manifesta como
misericórdia. Esta imagem é composta, mais do que pelo conteudo, bastante
genérico aliás, do verbo hãnan, sobretudo pelo conteúdo de hesed e
de rahªmim O termo hãnan, exprime um conceito mais amplo: significa a
manifestação da graça que comporta, por assim dizer, uma constante
predisposição magnânima, benévola e clemente.
Além destes elementos semânticos
fundamentais, o conceito de misericórdia no Antigo Testamento inclui também o
conteúdo do verbo hãmal, que literalmente significa «poupar (o inimigo
derrotado)», mas também significa «manifestar piedade e compaixão» e, por
conseguinte, perdão e remissão da culpa. O termo hus exprime
igualmente piedade e compaixão, mas isso sobretudo em sentido afetivo. Estes
termos aparecem nos textos bíblicos com menor frequência para indicar a
misericórdia. É oportuno ainda lembrar o já citado vocábulo 'emet, que
significa: em primeiro lugar «solidez, segurança» (no grego dos Setenta,
«verdade»); e depois, também «fidelidade»; e desta maneira parece relacionar-se
com o conteúdo semântico próprio do termo hesed.
CARTA ENCÍCLICA
DIVES IN MISERICORDIA
DO SUMO PONTÍFICE
JOÃO PAULO II
SOBRE A MISERICÓRDIA DIVINA
DIVES IN MISERICORDIA
DO SUMO PONTÍFICE
JOÃO PAULO II
SOBRE A MISERICÓRDIA DIVINA
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